FRANZ WEISSMANN, UM CASO
M. Pedrosa


Auto-retratos

Franz Weissmann é um artista, ainda relativamente moço, que começou tarde pelas dificuldades de vida, e desespera por recobrar o tempo perdido. Perdido... com a vida dura que levou, com a sorte que o obrigou, ainda na infância, a sair de casa, a perambular por todas as profissões.

Cedo descobriu seu amor das cores. E quando depois sentiu a revelação da fórma, quis entrar para a Escola de Belas Artes. Opuseram dificuldade, e êle teve que ir para o ginásio a fim de bacharela-se para afinal ter a oportunidade de aprender a desenhar, olhar um modelo. matricular-se enfim.

Preciosos anos lhe foram roubados, com essa exigência burocrática. Outro teria abandonado a pretensão todo entregues ás atrações das profissões práticas que rendem mais e asseguram uma vida mais confortável e garantida. Ele chegou mesmo a ingressar para a Politécnica. Não aguentou porém, e então, já com todos os preparatórios, todos os exames da lei, inclusive latim, geografia e ginástica, se apresentou a Escola de Belas Artes.

Quis fazer pintura, mas lhe disseram que esta ara uma arte para mulheres. Diante disso dedicou-se á escultura. Mas nunca chegava o dia de se pôr diante de um modelo e de começar a modelagem. Nas aulas de desenho não tardou a desanimar pois todos o condenavam porque queria saltar as etapas, gastava muito papel fazendo traços e linhas ora audaciosas demais ora muito grossas. O regulamento parece exigir que o aluno seja bem comportado em tudo, e não estrague papel com loucuras, mas siga á risca o traçado convencional.

Franz Weissmann tem a vocação do métier e já pagou, por isso, o seu tributo a tamanhas artísticas; o facto é que a vida raramente perdoa as vocações mais profundas. Expõe agora pela primeira vez. São 330 aquarelas e desenhos, numa profusão de cores, planos, de métodos maneiras que atordoa. Esta na febre de produzir, como quem quer recuperar o tempo perdido. É desses possuídos de frenesi de trabalhar, esquecidos de comer e de tudo.

É um rapaz inteligente e sombrio. A raça de emigrado europeu está marcada nele, sobretudo em certas aquarelas, em que se sente a inspiração severa e por vezes cerebral da escola alemã. É ao mesmo um instintivo e um cerebral. Há uma série de aquarelas que são retratos, cabeças ora melancólicas ora sombrias. Aqui e ali alguma coisa lembra a raça sofrida como na pintura de Segall. Tem a sedução pelas cores de vitrais, e vê-se por vezes que êle carrega Rouault consigo. É um filho retardatário do expressionismo, mas dotado do senso formal do construtor. Em outras aquarelas abandona os corpos, a fórma ovular que é nele uma obsessão, e extravasa numa tumultuária decomposição de fórmas de onde surgem milhões de germes, larvas, uma fauna microbiana agitada e multicor. É a desintegração biológica. Vê-se nelas uma explosão inconciente talvez éco do trauma do nascimento. A idéia da fecundação do feto o atormenta.

Num outro grupo sente-se a influência, não copiada nem intencional, mas evidente da musicalidade abstrata de Kandinsky. Em Weissmann a abstração é menos desinteressada, menos rica e sobretudo menos espontânea, e sem a profunda alegria que palpita nas abstrações policrômicas do mestre russo. São ecos dos bombardeios aéreos.

Em muitas dessas aquarelas tem-se a impressão de gravura, e são quase pintura, com planos e volumes que denotam o desenhista.

Este é de uma enorme fecundidade e perigosa facilidade. Alguns retratos, alguns nús revelam um temperamento forte e uma riqueza inventiva de fórmas e desenhos que não é comum. O aprendizado da escultura perpassa em quase todos os quadros. E é o seu drama saber se se fixará na escultura ou se se dedicará á pintura, sobretudo ao óleo, meio que ainda não tentou. A escultura desanimou-o porque sua ambição feroz era a pedra, o granito. Não se contenta com menos. Mas pedra, apesar das aparências é difícil, e o seu mestre se queixava que ele gastava muito qranito, e este era caro.


A exposição é caótica- e o número excessivo de aquarelas em série dá uma falsa impressão de facilidade que prejudica o próprio conjunto. Denotaria uma incapacidade de seleccionar que se se confirmasse, posteriormente, seria suspeita. Estaríamos diante de um caso de extrema facilidade manual ou de um artista torturado que se procura, que se debate e busca desesperadamente exprimir-se e criar? Não. Estamos em presença de um artista de facto mas que ainda não venceu o seu dilema. É-lhe um problema capital esse de escolher entre o mundo fantástico das côres e a severidade formal da escultura. Porque então não se entregar á experiência do óleo que tem a propriedade de, de certo modo, sintetizar as duas tendências, e casar a côr a forma, e o desenho á matéria?<...+>

Weissmann é, contudo, um nome a guardar, para que possa seguir-lhe os passos e acompanhar-lhe a evolução. Não acreditamos que fique pelo caminho como um marginal vencido pelo excesso de idéias e a extrema facilidade, mas sem o dom predestinado do criador. Desde já, porém, é um “caso”.


FRANZ WEISSMANN, UM CASO
©M. Pedrosa
Correio da Manhã – 26 / 11 / 1946