O novo Weissmann visto por Murilo Mendes

Na galeria da Casa do Brasil em Roma acha-se aberta até 6 de abril uma exposição de obras recentes do escultor Franz Weissmann. É a segunda mostra individual que o artista realiza na Europa desde que, em 1959, para lá viajou em gozo do prêmio de viagem ao estrangeiro que lhe foi concebido pelo Salão Nacional de Arte Moderna. A primeira foi em Madri, no ano passado, com apresentação do poeta João Cabral de Melo Neto. Agora outro poeta também crítico analisa sua fase atual: Murilo Mendes. Na impossibilidade de ver em Roma - helás - o resultado de tantos anos de trabalho e observação de Weissmann, divulgamos o excelente texto do poeta com algumas reproduções que permitem, embora precariamente, identificar a orientação que segue hoje esse artista, há alguns anos, como Volpi e outros, comprometidos com o rigor racionalista do concretismo.

"0 escultor, pintor e desenhista Franz Weissmann firmou-se, no Brasil, como um dos líderes do grupo 'concretista', empenhado num rigoroso trabalho de planificação e construção da obra de arte, objeto autônomo. Mais recentemente, tendo girado dois anos pelo mundo, em particular o mundo oriental, sua visão do homem e, em conseqüência, da arte, alterou-se. Na Índia, país onde a condição existencial do homem com seu nervo exposto publicamente é talvez mais visível que em nenhum outro, Weissmann recebeu um impacto que se transmitiu ao seu método criador. Preocupado antes com a organização da obra dentro de esquemas geométricos, pôs-se a desarrumar e machucar a matéria, colocando-se esteticamente como um antípoda de si próprio. Por isto, ao apresentar no ano passado, em Madri, uma exposição de obras do 'último' Weissmann, pôde o poeta João Cabral de Melo Neto levantar uma hipótese.

0 contato do artista com um mundo novo talvez o tivesse levado a indagar se a verdadeira atitude do homem ante a realidade não seria investigar sua desorganização natural, antes de impor-lhe qualquer organização.

0 conflito de Weissmann reflete, a meu ver, a problemática do artista moderno, oscilando entre o espírito de construção e de destruição. Num contexto mais amplo, diria que Weissmann é filho de um tempo que acelera o conflito entre duas culturas: uma, que declina, figura através das 'equações' teológicas de um Santo Tomás, o universo causal como um sistema fechado de ordem e justificação dos mínimos objetos hierarquicamente situados; a outra, que se inicia, baseada nas equações de Einstein, concebe este mesmo universo como um sistema de forças de energia expandindo-se e mudando sem cessar.
<...+>

Na carreira de Weissmann não se observa uma linha continuada, 'lógica', de evolução. Trata-se de um artista maduro solicitado por mais de uma direção, sensível às vertentes, atraído tanto pelo centro como pela periferia, o qual sabendo já superado um clima de rígido geometrismo, não adere totalmente a um informalismo rebelde a se integrar no contexto da civilização técnico-industrial. Representaria Weissmann uma tendência de compromisso?

Prefiro considerar a situação deste importante artista à luz de uma proposta de Enzo Paci no seu estudo 'Fenomenologia e informale': Ció che noi vediamo non é già costituito ma si trova in un continuo processo internazionale di costituzione, processo che si autocorrege, si forma e si reforma, in un'aperta sintesi intenzionale.

Esta movimentação dialética substitui com vantagem o antigo conceito de 'inquietação e angústia' aplicado aos artistas, ilustrando a meu ver as obras aqui expostas, obras que não representam a totalidade de Weissmann, mesmo porque foram criadas em circunstâncias materiais muito limitadas, mas que refletem suas alternativas de construção e destruição da forma. Isto se revela tanto nas pequenas esculturas como nas chapas de zinco e nos desenhos.

Estamos diante de pesquisas que se iniciam em algumas chapas e esculturas, desdobrando-se e completando-se noutras, segundo um critério normal de interação. Trata-se ou não de manter ou de agredir a forma, o artista é sempre guiado pela ragion morale que lhe impõe a consciência dos limites físicos. Poder-se-ia também, consultando certas obras de Weissmann - inclusive muitas que não se acham expostas aqui - aludir, ora à 'sensação côncava' ora à 'sensação convexa' anotadas por Musil enquanto outras evocariam les subdivisions prismatiques de l'idée, prescritas por Mallarmé. Um ponto entretanto me parece exato: tais trabalhos excluem a sensualidade e mantêm um timbre austero.

Quanto aos desenhos, alguns se aparentariam, mesmo de longe com a l'art brut, podendo-se acenar aqui por tangência a Dubuffet; mas já noutros o artista organiza o seu ímpeto e através das linhas que se agridem, se cruzam, se interpretam, propõe-nos uma escritura personalíssima, vizinha à do calígrafo oriental, escandindo os sinais com muitos requintes e minúcias, ou então uma espécie de partitura musical em clave fantasiosa. Outras vezes o artista não teme enfrentar o perigo 'cósmico', por exemplo no estupendo desenho em forma de esfera, no qual vejo uma espécie de ideograma oferecendo-nos a margem de mil interpretações. Entre o instinto de historicidade e a atração da intemporalidade oscila a linha de Weissmann.

<...+>

0 poeta inglês Donald Davie formula esta pergunta: Can spells or riddles be articulated?

Creio não ser esta uma pergunta vã. Aplicando o verso à criação artística, seria de fato interessante indagar se os sortilégios ou os enigmas poderão ser articulados. Estamos no centro de um problema sempre atual, que opõe espontaneidade e construção. No caso de Weissmann, como de outros artistas, se poderia aludir a um movimento pendular, que se observa há séculos, entre geometrismo e desarrumação, entre objetivismo e subjetivismo. De qualquer forma, registrando a desorganização ou tendendo à medida, a pesquisa do exigente Weissmann reflete a própria descontinuidade do homem, este ser de contraste, que transmite através do tempo e do espaço antagônicas versões de si mesmo e da sua condição terrestre, frágil como a argila e sólida como o ferro. 0 homem que é afinal a work in progress, ou, segundo a linguagem mais recente,'opera aperta'.

Talvez por isto as invenções de Weissmann possam ser consideradas justamente uma 'opera aperta' já que deslancham a colaboração do espectador, demolindo através de imprevistas combinações de formal e informal a barreira que separa a imagem da percepção."

©Murilo Mendes - Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 30 mar. 1963, Segundo Caderno, coluna de Jayme Maurício.