Frederico Morais
Weissmann em Ramos
Prefiro o atelier à galeria, o virtual ao
concreto, o inconcluso ao acabado, o relativo ao absoluto. A obra
acabada tem qualquer coisa já de morta, de inapelàvelmente velha.
Lembro de Krajcberg dizendo-me que a flor é o prenúncio da morte,
por isso preferia as raízes, que arrancava da terra mineral de
Minas, vida bruta, algo ainda ligado às entranhas da matéria.
Vinha pensando nessas coisas e naquela distinção que Worringer faz
entre capacidade e vontade artística (para o historiador austríaco,
o êrro da estética está em que, para ela, só a capacidade tem sido
elemento de valorização, isto é, a obra acabada, conclusa,
"clássica"), de volta do atelier de Franz Weissmann, em Ramos, na
Guanabara, nos fundos da Ciferal. Não é a primeira vez que vou a
Ramos "papear" com Weissmann. Na verdade, desde que voltou da
Europa, onde estêve seis anos, que acompanho sua obra. Vi suas
exposições no Rio, em Minas (por mim apresentada) e sua sala
especial na Bienal paulista. Em Minas, recentemente, vi seus blocos
de sucata prensada à maneira de César, uma espécie de virtualidade
às avessas, isto é, do que deixou de ser e não do vir-a-ser. O que
impressiona nestes blocos não são apenas as côres, a matéria ou a
textura conseguida, mas a capacidade que as coisas têm de
instantaneamente se organizarem, buscarem seu modo de ser, seu
comportamento. Apesar de identidade da forma exterior — o quadrado —
cada bloco tem seu próprio caráter, um é gordo, outro magro; um é
apolíneo e estóico enquanto outro é dionisíaco e hedonista. Ê esta
organicidade espontânea que impressiona Weissmann, que tem pensado
no sem sentido da composição feita artificialmente, da composição
laboriosamente buscada, enfim, do artístico. Na Europa, quase ao
acaso, começou Weissmann a amassar papéis ou traçar sôbre a fôlha
branca uma linha contínua, sem qualquer orientação preconcebida, e o
desenho terminava quando a pena se despregava da superfície. Dos
papéis amassados para as placas de sua atual fase brasileira — em
alumínio ou zinco — a continuidade é perfeita. No desenho ou na
placa, como no papel amassado, nada mais há de fixo, estável, é a
imaterialidade da luz que vale e conta.
Desde algum tempo Weissmann vem pensando realizar quadros ou
esculturas (seja o que fôr), imantizados elètricamente . Quadros que
se dissolvessem quando fôsse cortada a corrente elétrica ou do qual
o espectador pudesse lançar ou retirar partes. Qualquer coisa assim:
faça você mesmo seu quadro, ou deixe que o quadro se faça. Esta
idéia surgiu quando começou a armar correntes com clips, a lembrar
suas antigas colunas, que foram atraídas e dissolvidas por um
pequeno imã.
Desde que voltou da Europa, Weissmann sente-se meio aturdido e ainda
não encontrou seu nôvo caminho. Sabe que não pode voltar àquelas
"claras arquiteturas de antanho", às rigorosas estruturas da fase
concreta de um límpido "classicismo". Já na Europa começou a rasgar,
furar, socar, destruir chapas, destrabalhando e desconstruindo
aquilo que foi cuidadosamente construído e trabalhado. Mas as chapas
não revelaram ainda seu nôvo caminho, e Weissmann continua
masoquistamente insistindo. É uma luta cruel que o artista trava
diàriamente com a chapa, na qual se autoflagela, deixando calos,
quase feridas na mão. "É preciso beber o cálice até a última gota"
me confessa o artista, no seu estoicismo germânico. Algumas chapas,
na verdade, a maioria, são belíssimas, mas há nelas qualquer coisa
que fere o próprio ser do artista, ou, então, revela o seu
verdadeiro ser, até aqui escondido sob a capa de uma arte
construtiva.
Dizia no início dêste artigo que prefiro o atelier à galeria, isto
porque o atelier fica no campo da virtualidade, do vir a ser e não
do que é. O atelier é mais a vontade que a capacidade, é a obra
ainda por fazer ou sendo feita, portanto, mais próxima das íntimas
necessidades do artista, é a obra na sua essência, no seu momento
mesmo de criação, como necessidade vital, antes de quaisquer
considerações de ordem artesanal ou técnica. É a obra nascendo,
desabrochando, é a idéia mais que o pensamento. No atelier
participamos dêste ritmo de sangue da obra de arte, de sua pulsação.
O que chega à galeria já está automàticamente condicionado pelo
consumidor, pelo mercado de arte, pelas idéias estéticas em moda.
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Esta a sensação que tive, mais uma vez, no
atelier de Weissmann, onde me encontrava ajudando-o a escolher
algumas placas para uma exposição. Enquanto escolhíamos os relêvos,
que correspondem ao estágio atual de sua arte, minha atenção era
sucessivamente desviada para outros trabalhos soltos no chão, em
mesas, em caixotes, empoeirados e sujos, mas extremamente vivos e
ricos de significados. Falava há pouco de uma autoflagelação de
Weissmann em relação às suas chapas. E isto é o que se dá. Problemas
talvez mais atuais estão lançados em peças que aparentemente o
artista não está considerando. Estão ou estavam e já bem antes que
outros os tomassem por afinidade de preocupações, pela simples
contemporaneidade de idéias, etc, etc. É indiscutível a preeminência
de Weissmann no movimento concretista brasileiro — lá em Ramos está
o cubo recusado na primeira Bienal sob a alegação de má execução.
Hoje êste trabalho — um espaço denso, fechado, compacto — soa como
algo "clássico", inclusive na sua execução. Diante da "pop" é
qualquer coisa a lembrar um templo grego na sua claridade e
racionalidade.
Impressionou-me, também, a extraordinária versatilidade e
maleabilidade das "colunas" com as quais recebeu o prêmio de viagem
à Europa, no Salão Nacional. Colunas ou tôda a série de peças com
elementos iguais a se repetirem como na arte ótica de hoje.
Weissmann soube, desde cedo, tirar partido de resquícios
industriais, sucata, placas de alumínio ou metal que sobram das
prensas, nas quais os elementos se repetem uniformemente. Com essas
sobras Weissmann cria desenhos no ar, tôrres vazadas a captar a luz
e, feito isso, guardá-la, irriquieta, poèticamente dinâmica.
Sob a aparência de um construtivo, encontro no seu atelier um
Weissmann preocupado com soluções profundamente ambíguas, com uma
arte que corresponde à precariedade e transitoriedade de uma época
anti-clássica como a nossa, arte do aleatório, das permutações, que
se situa, não no horizonte do fixo e do durável, mas no "horizonte
do provável", como quer Haroldo de Campos. Cada vez mais, a arte
deixa de ser uma narração nostálgica de atos do passado para viver
na ação presente, do presente fenomenológico, uma arte
permanentemente em situação. Arte do particípio presente. No atelier
de Weissmann, típico de um artista romântico, que ainda vê na arte
uma espécie de parto com dor, estas idéias estão lançadas no chão,
nos cantos, no sótão. E não são idéias de hoje, começaram a surgir
aí por volta de 50. Já neste tempo Weissmann deixou o volume,
procurando o espaço real, como virtualidade; procurou o chão, como
bicho, queria suas esculturas nascendo do céu. Mas o que faltou a
Weissmann não foi apenas documentar tudo isso fotogràficamente e
mesmo em texto. Foi justamente reunir estas idéias num pensamento
coerente, estruturado, firme. Não basta as idéias, pois elas, por si
mesmas não têm continuidade. Ficam ai, soltas, até que alguém as
integre num pensamento, que poderá viver independente de quem o
formulou. As idéias se perdem, o pensamento permanece.
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©Frederico Morais - Minas Gerais - Suplemento
Literário - 1966