Discreta épica da forma
Ronaldo Brito
Décadas de exercício coerente transformaram a obra de Franz Weissmann quase em sinônimo da moderna escultura urbana brasileira. Infelizmente, a frase é um tanto irrealista e pede correção: décadas de exercício coerente deveriam ter transformado a obra de Weissmann em sinônimo de nossa moderna escultura urbana. Por ora, a tênue presença pública de nossa arte contemporânea e sua precária materialidade social continuam a determinar limites exíguos para um trabalho que vem se dedicando justamente a demonstrar a maleabilidade inesgotável das figuras geométricas, a revelar sua abertura essencial e nos ensinar sobre a verdadeira vocação do pensamento geométrico: não a de conter ou delimitar e sim a de irradiar, prodigalizar espaços.
Dadas suas virtudes intrínsecas, a escultura de Franz Weissmann engaja um contato público, assume a forma corrente de diálogo visual com o sujeito coletivo, de modo muito mais enfático do que o permitem as nossas duas outras poéticas construtivas que alcançaram, em escultura, a mesma potência estética. Refiro-me naturalmente às poéticas de Amílcar de Castro e Sérgio Camargo. Ambas sustentam e até exacerbam um inesperado embate corpóreo, que não deixa de promover valores emotivos inerentes à "física" do indivíduo, em princípio estranhos ao ideário construtivo e sua notória orientação social. Já Weissmann abandona desde cedo o trato com a volumetria, dá as costas aos séculos de tradição da estatuária ocidental, para entregar-se à voracidade lógica de uma linguagem estritamente planar: sua sintaxe fluida resume passagens e ultrapassagens de planos que surpreendem exatamente porque, afinal, resultam em esculturas, isto é, presenças materiais, que pesam e se equilibram, em suma, permanecem. E, no entanto, para cumprir-se, essa espécie volátil de escultura precisa reinterpretar a permanência como dinamismo puro. Posto que não é corpo, muito menos objeto, tampouco mero sólido geométrico, ela atém-se ao momento que talvez defina a verdade essencialmente instável da forma artística: vive a tornar-se o que é.
O fundamento da razão histórica construtiva sempre foi, como se sabe, a crença inabalável na força socialmente renovadora da forma. Tantas e tantas vezes, porém, esse otimismo vem propalado por obras de formalização insípida, quase sempre didáticas, quando não culpadas, que acabamos por nos tornar compreensivelmente ferozes ou indiferentes pessimistas formais. Contra semelhante desânimo, as esculturas de Franz Weissmann me parecem antídotos eficazes elas não pregam nenhum otimismo formal, elas são formalmente otimistas. O seu espírito lúdico imprime sempre um frescor, uma leveza própria ao senso de disponibilidade, às graves manobras de seus desafios geométricos - abrir ao infinito o cubo, reinventar retângulos em expansão ou contração, romper ou combinar elipses, círculos e quadrados em estágios de perpétua formação etc. E tudo isto anuncia espontânea, quase alegremente, uma ética austera de trabalho: a reflexão incansável e independente sobre os nexos da forma, o impacto sensível produzido por suas transfigurações tomam lugar na engenharia social de qualquer democracia livre.
Tais esculturas se resolvem idealmente, claro que sim, mas nunca a título de prova dos nove de equações geométricas a priori. Procuram responder, de fato, aos apelos, aflições e desejos característicos do envolvimento moderno do homem no mundo. Nesse sentido, espaço talvez seja apenas o nome já batido para uma dimensão social recém-conquistada que encerra um problema recorrente insolúvel mas também uma dádiva infinita.
De todo modo, em um ambiente, senão mesmo um contra-ambiente convulso, perversamente empenhado em refutar ponto por ponto o programa da Bauhaus de espiritualização do cotidiano, Weissmann continua a exercer sua discreta épica formal, a operar uma kátharsis eminentemente civil - em última instância, parafraseando Aristóteles, suas peças reconciliam o homem com a forma conturbada do mundo atual. E o fazem graças à compreensão intuitiva, somada a um quantum a essa altura incalculável de sabedoria plástica acumulada, sobre os valores básicos da percepção descentrada desse perplexo cidadão moderno - desde a sua habitual neutralidade demente diante do bombardeio constante de estímulos abusivos, sua inconsciência formal generalizada, até as suas historicamente inéditas agilidade de leitura e capacidade latente para discernir "todos" formais abertos e descontínuos.
Ali, à vontade no que pessoalmente considero o seu autêntico habitat, as ruas e parques dos grandes centros urbanos, uma escultura de Franz Weissmann constitui um feliz paradoxo: a miragem concreta. Feita da mesma matéria anônima da arquitetura ao redor, confiante na sensibilidade comum, prenúncio de cosmo meio ao caos, ela atrai o nosso olhar para detê-lo num instante de reflexão visual autônoma.
Evidentemente, quando se trata de experiência estética, é cada um por si, não há mesmo outro jeito. Dito isto, sempre é lícito especular. De minha parte, creio que, através dessas torções e tensões significativas das formas abstratas, adivinhamos uma insuspeitada comunhão dos opostos, constatamos (e saímos fortalecidos) a comunicabilidade universal peculiar à imaginação geométrica, enfim, descobrimos harmonias transitórias ali onde só enxergávamos confusão e desordem. Cada uma das esculturas de Franz Weissmann conseguiria assim realizar, no plano do imaginário formal, algo muito palpável - viabilizar um encontro, selar um acordo, liberar um caminho que, antes delas, pareciam altamente improváveis. Em um real que continua a se reproduzir sobretudo através de conflitos, equívocos e desencontros, convenhamos, não é pouco, nem um pouco.
©Ronaldo Brito - Franz Weissmann: uma retrospectiva - CCBB - Rio de Janeiro - 1998